Transtornos neurológicos são doenças que acometem as estruturas do sistema nervoso. Dividido em central e periférico, o sistema nervoso é o responsável por transmitir impulsos elétricos que resultam em movimentos voluntários e involuntários. Diferentes desordens podem atrapalhar a formação dos comandos ou sua transmissão, provocando sintomas bastante diversos.
Confira abaixo como a cannabis pode auxiliar em diferentes doenças neurológicas:
Epilepsia
A epilepsia é uma das doenças neurológicas mais frequentes e com maior impacto na qualidade de vida, devido a suas consequências físicas, cognitivas, psicológicas e sociais. É caracterizada pela presença de episódios espontâneos de crises convulsivas, em que ocorre uma atividade neuronal excessiva. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que aproximadamente 50 milhões de pessoas sofrem de epilepsia no mundo.
O tratamento da epilepsia tem como objetivo interromper as crises através de medicamentos antiepilépticos. Atualmente, diversos fármacos antiepilépticos estão disponíveis, entretanto cerca de 30% dos pacientes não conseguem controlar a doença com o uso desses medicamentos. Nesse contexto, a terapia com a cannabis medicinal vem se mostrando muito eficaz para os casos de epilepsia refratária, ou seja, que não responde a mais de dois tipos de medicações.
Já existe uma sólida base científica do uso do canabidiol, substância presente na cannabis, para a epilepsia refratária. A maioria das pesquisas realizadas são com crianças que possuem as síndrome de Lenox-Gastaut, Dravet e esclerose tuberosa.
Um estudo realizado pelo departamento de ciências do cérebro do Imperial College London, e publicado na BMJ, uma das mais influentes e conceituadas revistas de medicina, mostrou que o canabidiol reduziu em até 86% a frequência de crises epilépticas em crianças. Outro estudo avaliou 225 pacientes, crianças e adultos, com síndrome de Lennox-Gastaut em uso de óleo rico em canabidiol durante 14 semanas. Todos os pacientes tiveram redução importante da frequências das crises. A revisão da literatura mais recente inclui 8 estudos clínicos e mostra que a redução média na frequência total de crises convulsivas entre todos os estudos foi de 40% a 60%, além de que todos apresentaram baixa incidência de efeitos adversos.
Transtorno do Espectro Autista
O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) reúne desordens do desenvolvimento neurológico, em que pessoas dentro do espectro podem apresentar déficit na comunicação social, como manter pouco contato visual, ter dificuldade para falar ou expressar ideias, e ficar desconfortáveis em situações sociais, além de apresentarem padrões restritos e repetitivos de comportamento, como movimentos contínuos, interesses fixos e hipo ou hipersensibilidade a estímulos sensoriais. Todos os pacientes com autismo possuem estas dificuldades, mas cada um deles será afetado em intensidades diferentes, resultando em situações bem particulares.
Atualmente, não existem medicamentos aprovados para o tratamento dos sintomas centrais do TEA e, portanto, a terapia envolve o uso de medicamentos que podem atenuar alguns dos sintomas associados, bem como terapias comportamentais e educacionais. Devido ao grande número de pacientes refratários aos tratamentos e a incidência de efeitos adversos graves, tratamentos que melhoram ou substituam a terapia convencional têm sido cada vez mais procurados.
Pesquisadores descobriram que crianças com TEA possuem um desequilíbrio no sistema endocanabinoide, com baixos níves de endocanabinoides, e isso é um dos fatores responsáveis pelas dificuldades de comunicação e interação. Diante disso, o interesse na pesquisa sobre como a suplementação com a cannabis pode influenciar nesses pacientes cresceu.
Um estudo acompanhou 60 crianças com TEA e que não respondiam aos medicamentos convencionais em uso de óleo de canabidiol. Após o tratamento, houve melhora considerada alta ou altíssima em surtos comportamentais (61% dos pacientes); ansiedade (39% dos pacientes); problemas de comunição (47% dos pacientes) e comportamentos disruptivos (29% dos pacientes). Outro estudo realizou avaliações quinzenais em 53 participantes com autismo em uso de óleo de cannabis e observou melhoras nos sintomas de automutilação e crises de raiva (67,6% dos pacientes); hiperatividade (68,4% dos pacientes); distúrbios do sono (71,4% dos pacientes) e ansiedade (47,1% dos pacientes).
Esclerose Múltipla
A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença neurológica, crônica e autoimune, ou seja, as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, especificamente a bainha de mielina que revestem os neurônios, provocando lesões cerebrais e medulares. Os sintomas incluem fadiga intensa, depressão, fraqueza muscular, espasmos, alteração do equilíbrio e da coordenação motora, dores articulares, disfunção intestinal e da bexiga.
A doença atinge geralmente pessoas jovens entre 20 e 40 anos de idade e não tem cura. De acordo com a OMS, cerca de 2,8 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem com a EM. O tratamento consiste no uso de corticosteroides e imunossupresores que ajudam a espaçar os episódios de crise. Já em momentos de crises, o uso de relaxantes musculares e medicamentos para dor são utilizados, porém cerca de 40% dos pacientes não respondem a esses medicamentos.
Diversos estudos na literatura têm mostrado o potencial terapêutico do tetrahidrocanabinol (THC) associado ao canabidiol (CBD), dois canabinoides da planta Cannabis sativa. O primeiro medicamento à base de cannabis registrado no Brasil, o Mevatyl® (Sativex® em outros países), é composto por esses canabinoides e foi aprovado para o tratamento de rigidez muscular, espasticidade e dor associados à esclerose múltipla. Após 12 semanas de tratamento, pesquisadores da Universidade de Brussel, na Bélgica, encontraram que 74% dos pacientes em tratamento com o óleo de THC:CBD obtiveram melhoras significativas em todos os sintomas.
Outro estudo reuniu dados de 32 estudos clínicos em uma revisão da literatura, encontrando que todos os estudos mostraram resultados positivos com o uso de THC:CBD na redução dos sintomas, como dor, espamos e cãibras, além da redução do uso dos demais medicamentos.
Além desses sintomas, outros estudos vêm mostrando os benefícios da cannabis nos distúrbios do sono e urinários que acompanham a doença. Esse ensaio, realizado com pacientes com EM do University of British Columbia Hospital (UBCH), mostrou que 95% deles tiveram melhora nos distúrbios do sono com o uso da Cannabis. Com relação aos sintomas de inconstinência urinária, 630 pacientes foram recrutados para outro estudo, em que 38% deles apresentaram redução significativa dos episódios de incontinência.
Alzheimer
A Doença de Alzheimer (DA) é uma doença neurodegenerativa debilitante que se caracteriza pela deterioração cognitiva, levando à perda de memória e desorientação. É a forma mais comum de demência, representando mais de 60% dos casos e afetando mais de 33 milhões de pessoas em todo o mundo.
A fisiopatologia está relacionada com distúrbios no processamento de algumas proteínas do sistema nervoso central (SNC), como a β-amilóide (Aβ) e a Tau, causando neuroinflamação e estresse oxidativo.
Existem poucas opções terapêuticas disponíveis, sendo que nenhuma é capaz de prevenir ou reverter a progressão da doença, apenas aliviam os sintomas. Inibidores da acetilcolinesterase (ex.: rivastigmina) e antagonistas de NMDA (ex.: memantina) são estratégias utilizadas, entretanto possuem diversos efeitos adversos como vômitos, diarreia, alucinações e tonturas, além de possuírem eficácia limitada no controle sintomático.
Diante disso, é improvável que qualquer fármaco com apenas um mecanismo de ação seja capaz de atenuar a complexa cascata de reações envolvidas na DA. Portanto, uma abordagem medicamentosa multifuncional fornecerá benefícios mais amplos do que os medicamentos atuais.
Recentemente, o sistema endocanabinoide ganhou atenção dos pesquisadores, pois está associado à regulação de uma variedade de processos relacionados à DA, incluindo o estresse oxidativo, a ativação de células gliais e a depuração de macromoléculas.
O canabidiol (CBD) é o principal candidato para esta nova estratégia terapêutica. Pesquisas in vitro encontraram que o CBD:
- Atua como neuroprotetor
- Previne a neurodegeneração hipocampal e cortical
- Diminui a inflamação no SNC
- Protege contra a neurotoxicidade mediada pela proteína Aβ
- Reduz a hiperfosforilação da proteína Tau e a produção de Aβ
- Regula a migração de células microgliais
- Aumenta a expressão de neurotrofina, responsável pela neurogênese
Esses achados foram confirmados em diversos estudos pré-clínicos, em que o CBD foi capaz de prevenir o desenvolvimento de déficits cognitivos em animais com DA, sugerindo uma nova abordagem para o Alzheimer.
Estudos em humanos ainda são escassos, entretanto o interesse da comunidade científica neste tema vem crescendo. Atualmente, a Cannabis medicinal já é utilizada por pacientes com DA no manejo dos sintomas, como melhora do sono, redução da agressividade e da ansiedade, contribuindo para a melhora da qualidade de vida.
Parkinson
A doença de Parkinson (DP) é caracterizada como neurodegenerativa e progressiva, em que ocorre perda dos neurônios dopaminérgicos, resultando na deficiência de dopamina no sistema nervoso central. Estima-se que acomete 1% da população mundial acima de 60 anos e, quando os sintomas motores surgem, cerca de 60% dos neurônios já estão comprometidos.
As principais manifestações motoras da DP são a hipocinesia (incapacidade de realizar movimentos voluntários), bradicinesia (lentidão anormal de movimentos voluntários), acinesia (perda de movimentos inconscientes), rigidez muscular e tremor em repouso. Além desses, os sintomas não motores também estão presentes, como ansiedade, insônia, depressão e psicoses.
O tratamento realizado visa apenas a redução dos sintomas e a repressão da evolução, já que não existem medicamentos no mercado capazes de controlar ou reverter o dano neuronal já formado. Como na doença há uma deficiência de dopamina, logo, os diversos tratamentos visam elevar a estimulação dopaminérgica, sendo a levodopa o principal fármaco. Entretanto, apresentam grandes efeitos adversos, como movimentos involuntários repetitivos, os quais ocorrem em cerca de metade dos pacientes. Dessa forma, há uma constante busca por novas substâncias que possam ser utilizadas sem causar implicações tão significativas na qualidade de vida dos pacientes.
Estudos publicados ao longo das últimas décadas relatam benefícios clínicos obtidos através do uso de produtos medicinais à base de cannabis. Entre os principais efeitos relatados pelos pacientes estão a redução significativa dos sintomas motores, da dor, a melhora no sono e dos sintomas ansiosos.
Descobriu-se que o sistema endocanabinoide está envolvido na fisiopatologia da DP, tornando os fitocanabinoides, presentes na planta Cannabis sativa, objetos de interesse científico. Diante deste achado, pesquisadores analisaram o líquido cefalorraquidiano (LCR) de pacientes de DP não tratados e os resultados mostraram níveis altos de anandamida, um canabinoide produzido pelo nosso organismo, reforçando a interação entre o sistema dopaminérgico e endocanabinoide.
Os canabinoides tem a capacidade de modular as alterações neuroquímicas causadas pela redução dos níveis de dopamina. Também possuem propriedades antioxidantes, antiexcitotóxicas e anti-inflamatórias, em que tratam vários sintomas da doença utilizando diferentes mecanismos de ação, de acordo com estudos pré-clínicos.
Ao se tratar de evidências clínicas, várias pesquisas envolvendo pacientes que utilizavam cannabis para tratar seus sintomas de DP mostraram melhoras nos sintomas gerais, bradicinesia, rigidez muscular, tremores e discinesia, além de melhoras no humor, ansiedade e sono. Em um destes estudos, houve redução do uso de outros medicamentos por cerca de metade dos pacientes. Além disso, o interesse em utilizar cannabis medicinal foi relatado por 65% dos não usuários em outra pesquisa.